ARTIGO: Segurança jurídica e Tribunais de Contas - Edgard Camargo Rodrigues
06/09/2023 – SÃO PAULO – Segurança jurídica requer estabilidade e, consequentemente, previsibilidade garantidas por leis que ostentem virtudes de permanência e solidez, asseguradas por decisões judiciárias ou administrativas que lhes deem exata compreensão e definitividade. Hoje, as emendas à Constituição da República somam quantidade próxima a cento e trinta alterações na lei básica, e consta que há cerca de três mil propostas aguardando na fila. As PECs figuram no cotidiano dos noticiários políticos e/ou econômicos sempre como solução de algum problema ou criação de outro, vulgarizando procedimento que, teoricamente, reservar-se-ia para obter medida de relevância nacional, de inegável necessidade, a ponto de consentir com a alteração no esteio jurídico fundamental. Tanto que se exigem quorum qualificado e dois turnos de deliberação pelas Casas do Congresso, como a proclamar o rito reverencial e destacar a magnitude da ação legislativa nesse particular afazer.
Qual o quê. Dizem a brincar que é mais fácil alterar a Constituição do Brasil do que a convenção do condomínio da sua residência. Não duvido, haja vista a profusão de péquis para todos os gostos, sempre aprovadas segundo os interesses circunstanciais da política e dos governos. Recentemente aprovou-se uma para criar condições especiais na transição de uma gestão nacional para outra. Ué, não deveria ser ao contrário, que as passagens de governo se submetessem a regras já postas e conhecidas? De tão banais, as péquis ganham apodos: a da transição virou péqui da gastança, a da reforma administrativa era conhecida como péqui do fim-do-mundo, à que perdoa os crimes políticos dos partidos chamou-se péqui da desfaçatez (essa é ótima..).
Apesar de tudo, a produção legislativa infraconstitucional vai muito bem, com medidas de largo alcance longamente estudadas e debatidas, atentas à concretização das políticas públicas efetivamente relevantes. Cito como exemplo o Marco do Saneamento mas, ora ora, alterado em plena vigência por decreto do Executivo! Depois suspenso este por Decreto Legislativo da Câmara Federal que, encaminhado ao Senado, estaria, está ou esteve dependendo de um acordo... Acordo? Como assim, para assegurar eficácia a uma lei aprovada, sancionada e em pleno vigor é necessário um acordo?
Preciso voltar para a escola. A lei 14.133/21 instituiu novo regime de licitações e contratos e o legislador, ciente da necessidade de que as administrações se adestrassem visando a sua correta implantação, estabeleceu-lhe vacatio legis de dois anos. Mesmo assim, medida provisória estendeu o período para dezembro de 2023, atendendo a maus alunos que não fizeram a lição de casa (cerca de 60% dos Prefeitos, segundo a Confederação Nacional dos Municípios), apesar de todo o empenho dos Tribunais de Contas por este Brasil afora em buscar instruir e preparar os administradores públicos.
E o que dizer dos famosos jabutis, disposições que se penduram nas medidas provisórias durante sua tramitação, para aproveitar o bonde? Isso se faz às escâncaras, na calada da noite ou do dia, tanto faz. Um dos mais recentes criava tributação de fundos exclusivos ou "off-shores" e vinha pendurado em medida provisória que dispunha sobre salário-mínimo (!). Em boa hora teve o legislativo a iniciativa de fulminá-lo.
A esse ambiente em que se agita a produção do direito positivo vem acrescentar-se a discussão, que não é de hoje, sobre os exatos limites de ação dos Poderes da República, em que se apontam distorções, uns a interferirem em competências de outro, mutuamente, a relativizar a norma de harmonia e independência do artigo 2º da Constituição Federal.
Nesse pano de fundo, creio difícil pleitear ou obter segurança jurídica. Pois parece tudo muito natural, nada a provocar reações efetivas sejam da imprensa, da classe política ou da classe jurídica. Os juristas, mesmo os verdadeiros, preferem o silêncio ou as tímidas observações. Assim, absorvamos a realidade e saudemos o novo normal.
Em meio a tal turbulência agem com serenidade absoluta os Tribunais de Contas. Sua composição mista os mantêm distantes das conveniências, paixões, preferências ideológicas, polarizações, o que seja. As convicções dos seus integrantes cedem lugar às diretrizes dos respectivos colegiados exercidas sob garantias de índole constitucional, a afastar o predomínio de qualquer interesse ou interferência externa. Assim, apresentam-se à sociedade como referência segura de confiabilidade e interlocutores credenciados entre esta e os governos. Fruto de intensa dedicação de seus Ministros e Conselheiros, desenvolveram ao longo dos anos valioso patrimônio jurídico e cultural a serviço do aperfeiçoamento da atividade administrativa e governamental, solidificado pelo compartilhamento de ações e experiências do controle externo. Nesse particular, merece permanente aplauso a Atricon - Associação dos Membros dos Tribunais de Contas, hoje comandada pelo incansável Conselheiro Cezar Miola, do TCE/RS, face à ação congregadora entre os Tribunais, à intensificação das medidas de aproximação com o público a quem servimos e ao incentivo para engajamento das Cortes nas ações públicas ou privadas voltadas à concretização das políticas públicas de interesse geral. Tudo lastreado em aprofundados estudos desenvolvidos pelo Instituto Rui Barbosa, atualmente sob a presidência do Conselheiro Edilberto Pontes (TCE/CE), dedicado o organismo a municiar os Tribunais e seus integrantes da produção de estudos técnicos e acadêmicos bem como à sua difusão.
Ouso afirmar, quem procura segurança jurídica no Brasil de hoje só a vai encontrar nos Tribunais de Contas.